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“O jeito que você amou cinco anos atrás não existe mais”

Nossa editora Patrícia Zaidan discute o amor em tempos digitais – mais instigante, ele ganha novos contornos, se amplia, traz diferentes sensações e nos torna pessoas mais ecléticas e adaptáveis

Por Patrícia Zaidan Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 28 out 2016, 01h53 - Publicado em 21 jan 2016, 14h20

O amor erótico está mudando. É vida in progress. O jeito que você amou dez ou cinco anos atrás não existe mais. A explicação é simples: você não é a mesma pessoa sob a influência das redes sociais. Hoje, pensa, trabalha, estuda, compra e gosta de modo diferente de quando não estava 100% incluída no digital. As características da internet se introjetaram; como ela, nos tornamos mais voláteis, instantâneos e um pouco dúbios também. Saltou da web para a rotina presencial um falar mais assertivo, corajoso, espontâneo, um discutir sobre tudo. Até o corpo foi transformado pela tecnologia e pela cultura de transgressão das coisas – entre elas a paixão. Temos, agora, um pós-corpo acrescido de componentes não-humanos, que participa de um circuito integrado de dados e imagens. Somos a mescla de chips de silício e tecidos orgânicos, bits de informação e bits de carne e osso, como menciona a paulista Lucia Santaella, papisa da semiótica, no livro Linguagens Líquidas na Era da Mobilidade. É fato: trocamos de roupa e de humor sem “desplugar” da mão o smartphone, membro de extensão dos olhos, dos pés, do cérebro e do coração.

A ideia do homem ampliado, do ser híbrido, não é nova. A filósofa, bióloga e feminista americana Donna Haraway criou em 1985 o Manifesto Ciborgue, que, simplificando, mostra a bagunça entre as fronteiras, que eram tão bem definidas no passado. Orgânico e inorgânico estão juntos, bicho e gente idem, o instinto livre e o controle dele se entrelaçam. Com o Ciborgue, metáfora retirada da ficção científica, Haraway questiona sobretudo a identidade de gênero. E está certa: o que são um homem e uma mulher, senão um modelo ensinado pela tradição? Santaella, com 40 livros publicados, clareia o conceito dizendo que “reivindicar a existência de corpos pós-humanos significa deslocar, tirar do lugar as velhas identidades e orientações hierárquicas, patriarcais, centradas em valores masculinos”. Ótimo! Isso quer dizer que o nosso pós-corpo quer amar mais, de um jeito fluido, com o tato, o paladar, o olfato, a visão e a audição tonificados e multiplicados. Ainda gostamos muito de abraçar, beijar, passar a língua, sugar, mas os sentidos deixam de ser cinco. Na interação em rede eles sobem para sete, oito, dez – depende de cada um. Podem-se exercitar intuição, teletransporte, telepresença, telepatia, pressentimento… Todos permeados pelo desejo. Se trocamos com os outros e outras na biosfera maquínica é, exclusivamente, porque queremos.

VALORES PÓS-TUDO

Ainda estamos aprendendo a conviver nesse universo recente, onde os valores se recodificam. Alguns deles:

Privacidade. Continua a existir, mas vem com um dosador. Decidimos quanto dar de intimidade, para quem e até que ponto revelamos os episódios protagonizados, os que fragilizam ou inflam o nosso ego. Freud, se vivesse na efervescência atual, aprofundaria seus estudos sobre o narcisismo.

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Fidelidade. Ganha elasticidade. Se declaro amor a vários outros ao mesmo tempo, não estou sendo, necessariamente, desleal e sem constância nas afeições. Há muitos tipos de amor erótico. Do mais próximo, queremos certa exclusividade (ok!), mas ela não se traduz em propriedade ou domínio. O afeto pode, sim, ser fugaz. Meu coração está posto completamente naquilo que me arrebata agora. Quanto tempo vai durar só o próximo estímulo me dirá.

Transparência. Conto? Não conto. As experiências muito particulares, mesmo as que envolvem volúpia corpórea, hoje em dia são etéreas. Logo, para que fazer sofrer seu parceiro mais palpável?

Compromisso. Esse, então, precisa repaginação urgente. O que é? É obrigação? Promessa? Dívida? Cartório? Jura? No amor, ele passou a ter a ambivalência que Santaella identifica na web: é mutante. Talvez tenha dois pesos e até mais medidas. Então, para mim, vale o homem que vem por escolha e segue junto até as profundezas do escuro, ermo ou deserto sem necessitar de um juiz quando chega a hora de partilhar as quinquilharias materiais.

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O GRANDE AMOR

Zilhões de coisas se transmutam, mas os mistérios humanos, os enigmas da paixão e os sentimentos (com seus sintomas) permanecem idênticos, embora com gradações. A cantora Elza Soares, mulher à frente de seu tempo, declarou a CLAUDIA em 2009 que amou o craque Garrincha acima de tudo e com intensidade e oscilação rodriguianas. E fez cada homem conquistado, depois, se sentir o amor maior. O desafio é experimentar o grande amor toda vez que estiver amando. O maldito é que o romantismo ainda fere com flecha a alma feminina. “Está posto desde o início, ao menos para uma mulher: você vai borrar o rímel”, escreve a psicanalista paulista Déborah de Paula Souza, no prefácio de Um Livro de Amor, de Cristiane Mesquita e Rosane Preciosa. “Os amores que não podem mais ser amados continuam vivos em algum lugar. Tem hora que, se o amor não morre, dá vontade de matar. Esse é o escândalo”, diz. “Enterrem meu coração no aplicativo do celular. iPhoda.” Perfeito, Déborah! Só discordo de matar. Se foi bom, deixa vivo na lembrança, pode-se amar a memória, e isso não impede a paixão por alguém que acabou de chegar. O jornalista Xico Sá tem uma singela explicação: “O amor é para gastar. Para que economizar, pôr na poupança? É para viver!”

Complica quando aquele ser do passado perturba a(s) sua(s) nova(s) conquista(s) do presente. Não deixa você usufruir. Aí, é preciso cantar: “O pra sempre sempre acaba”. Então, mate! Para exterminar o amor temos a licença do polonês Zygmunt Bauman, para quem nada é para durar. Desde 2000, quando lançou o livro Modernidade Líquida, esse sociólogo usa a similaridade com a água para traduzir a sociedade. Água não tem forma, escapa, escorrega, transborda, não se molda, transpõe obstáculos e fura pedra dura – trata-se de uma rebelde, enfim.

No discurso de Bauman, traz angústia enxergar “um mundo repleto de sinais confusos, propenso a mudar com rapidez e de forma imprevisível”. Por isso, ele acha frágeis os laços humanos. Será? Tenho dúvidas. Nosso caráter se adapta e nos protege. Dessas frases boas da internet, cabe esta: “Em tempos líquidos, é difícil ser sólido”. Eu acrescento: e sóbrio também. Talvez por pânico, tantos têm lido os quatro livros de Bauman publicados depois: Amor Líquido, Tempos Líquidos, Vida Líquida e Medo Líquido. Se conforta, noto que a velocidade – constante no mundo digital (que antagônico!) – tem vários lados. Deleta-se o cara que não deu certo. Vapt, e já foi embora o bruto, o chato, o excêntrico do app que aproxima pessoas. Não quero, não deixo que insistam inbox. Desidrato o líquido.

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VENENINHOS REVISITADOS

O ciúme não acabou, anda forte no game. É o tiozinho, o lado miserável do amor (o conceito desgasta, mas ele não cai) e, às vezes, o perverso lobo-cordeiro da pornografia de revanche. A dúvida feminina, igualmente, persiste: “Por que ele não me responde, some, não posta, não tuíta?” O desamparo, descrito por Freud, não se resolveu no pós-humano. Tem ainda a solidão, por mais conexões que se mantenha. Para esse caso, a poesia ainda é o antídoto. Voltando ao chavão: você não é mais a mesma. Então, brinque com suas personas. Acabou a identidade unitária, podemos ser belas (se não somos tanto), felizes por instantes, livres, deprê, de açúcar. A imagem quem constrói é a autora. Já ia esquecendo destes avanços: terminar a relação por WhatsApp sem justificar e contar com o admirável crescimento da probabilidade de viver incontáveis finais felizes. Uhu!

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