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Coluna da Liliane Prata: Coisa de rico, coisa de pobre

Trabalhar com o que ama é coisa de rico? Insônia é coisa de rico? Nossa editora Liliane Prata fala sobre o assunto

Por Liliane Prata
Atualizado em 27 out 2016, 21h20 - Publicado em 21 jul 2016, 18h22

O Brasil está entre os países mais desiguais do mundo – como informa a ONU, como informa o IPEA, como sentem nossos olhos, cabeça e coração ao caminhar nas ruas de qualquer cidade grande brasileira, onde a concentração de renda é escancarada. Como todos temos consciência desse fato (ainda que alguns não se importem), ele acaba muito presente nos nossos discursos – às vezes com coerência, mas às vezes bizarramente.

– O que eu quero dizer é que a consciência da desigualdade às vezes vem à tona em raciocínios meio tortos, às vezes bizarros, mesmo – comento com meu marido, no café da manhã, depois de divagar sobre o assunto em uma fala menos organizada do que o parágrafo acima.  – Viver num país assim mexe com a gente, afeta o nosso modo de ver as coisas.
– Sim, se a gente vivesse na Bélgica, isso também afetaria nosso modo de ver as coisas – ele devolve. – Do que você tá falando exatamente?
– Aqui no Brasil, tem hábitos que são de um elitismo horroroso, tipo quando vemos aquela casa em que os moradores usam um tipo de papel higiênico e a empregada doméstica, outro. Mas tem uns hábitos que muita gente considera elitista e eu não, então você, que já foi pobre e acha o cúmulo o quanto eu topo pagar numa xícara de expresso, podia me dizer se estou sendo elitista.

(O pai do meu marido trabalhava como pintor de parede, sua mãe era ascensorista, uma de suas irmãs passou a infância em orfanato, enfim, ele teve uma vida bem diferente da minha, que não sou rica, mas sou filha de professores, fui para a Disney com 15 anos e acho que super vale a pena pagar 6 reais por uma xícara de expresso num café adorável).

– Tipo o quê, Lili… – ele fala, com aquela cara que ele me faz quando pede mais objetividade, mas é difícil objetividade quando o assunto é desigualdade, elitismo e tudo isso, um assunto tão familiar aqui, mas tão difícil, tão cheio de nuances.
– Tipo: outro dia eu estava com muito, muito frio, e uma colega, irritada com meu comentário de que eu estava sentindo muito, muito frio, disse que frio sentia o morador de rua que dormia ao relento. Lembrei de uma vez que não comi, minha pressão baixou e eu desmaiei de fome. Frio, fome: não vou comparar o que sinto com o que outra pessoa sente, até porque sensação é sempre subjetiva e não se compara, ainda mais outra pessoa com uma vivência tão diferente da minha, certo? Mas como posso negar que, uma vez que há moradores de rua passando frio, eu estou sentindo frio? Como se o frio ou a fome deles interferissem no meu frio ou na minha fome? Não é um pouco louco, isso?  
– Hum…
– Outro dia, vi alguém escrevendo no Twitter que insônia é coisa de rico, porque quem passa o dia pegando um monte de ônibus e faxinando fica tão cansado que apaga à noite. Lembrei do faxineiro de um prédio onde morei e tinha problema pra dormir.
– Ah, Lili, devia ser uma piada…
– Tá certo, mas você entende o que eu quero dizer? Por exemplo, dizer que essa vontade de trabalhar com o que ama é uma bobagem elitista. Pessoas privilegiadas economicamente têm muito mais escolhas, inclusive o privilégio de começar três faculdades e desistir, tirar um ano sabático para se descobrir, essas coisas todas.
– Isso é fato – ele responde.
– Mas a gente só pode amar o que paga bem? Digo, você acha mesmo impossível que alguém que tenha uma profissão mal remunerada para os nosso padrões ame o que faça?

Conto para ele que, quando passei um mês na Nova Zelândia, conversei com um operário de obra de construção civil que dizia que não havia nada mais relaxante do que ficar lá pra cima e pra baixo com os blocos de concreto. Não estou falando da qualidade de vida dele na Nova Zelândia, que é melhor do que qualquer operário aqui, mas sim da atividade que ele fazia.

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Pego um artigo da revista francesa Philosophie Magazine que um amigo me mostrou recentemente e resumo para ele. O autor, Charles Pépin, falava de três possibilidades de ser feliz no trabalho: a alegria de se desenvolver, realizando as próprias habilidades; o prazer da competência e o entusiasmo da sublimação. Por que a gente enfiou na cabeça que só dá para amar atividades intelectuais, artísticas ou simplesmente charmosas?    

– Uma coisa que me incomoda – ele diz – é esse discurso de que os ricos são essas pessoas vazias com suas coleções de carro, seu sem-número de funcionários, suas roupas de grife. Esse maniqueísmo do tipo: rico é vazio, pobre, se ficasse rico, gastaria o dinheiro direito, sem tanta futilidade.
– Bom, mas é muito vazia mesmo essa vida de consumo-ostentação.
– Claro, mas quando você vê a história de alguém muito pobre que ficou rico, jogador de futebol, cantor etc… Muitos vão lá e levam essa mesma vida: com roupas de grife, coleção de carro etc.

Mastigo meu croissant e fico pensando a respeito. Ele tem razão. Vazia é a sedução do dinheiro, são esses valores malucos. O problema é a ganância, o poder que as enormes quantias de dinheiro exercem sobre as pessoas.

– É… tem a ver com o que eu tô falando, sim – falo.

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Ele se levanta para se arrumar para o trabalho e eu termino meu café pensando sobre tudo isso. A desigualdade é, sem dúvida, uma coisa horrível, vergonhosa, desumana, que precisa estar na mira de qualquer governante que faça jus à função e se preocupe minimamente com direitos humanos. E também é uma coisa muito doida para quem é brasileiro. Porque, se, por um lado, tem pessoas que não se importam, por outro tem aquelas quem se importam tanto que, movidas por uma culpa terrível, desautorizam aspectos da própria subjetividade em função de aspectos econômicos.

Fico me perguntando para que serve, afinal, essa culpa toda: se é construtiva, transformando-se em ação, ainda que individual e pontual; se só faz mal e não acrescenta nada; se, às vezes com função e às vezes sem função nenhuma, é parte inerente de ser brasileiro e está fadada a se transformar em bizarrice nos nossos dias mais sensíveis e desnorteados.

Liliane Prata é editora de CLAUDIA e escreve aqui no site semanalmente. Para falar com ela, clique aqui!

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