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Os obstáculos vencidos pelas atletas para chegar à Rio 2016

As atletas brasileiras que brilharão nos jogos olímpicos tiveram um começo difícil. Driblaram a dor, a falta de estrutura e de apoio.

Por Isabella D’Ercole
Atualizado em 7 abr 2021, 10h31 - Publicado em 4 abr 2016, 14h00

Uma garota de traços germânicos descia ao porão do navio, abria os sacos de café, juntava as colheradas do pó à água fervente, coava, punha as xícaras na bandeja e ia vender a bebida brasileira, cheirosa, para os passageiros. Guardava no bolso o dinheiro com que pagaria a viagem para disputar, em 1932, a Olimpíada de Los Angeles, nos Estados Unidos. Era a nadadora paulistana Maria Lenk, então com 17 anos, criadora do nado borboleta e única menina entre os 68 atletas do nosso país que, com ela, ofereciam o cafezinho. “Na volta, devolvi o uniforme que emprestei para competir”, repetia Maria, valorizando suas aventuras no esporte nacional. “O que valia era o conceito do amadorismo”, reiterava. Aprendera a se virar com ele e com o improviso aos 10 anos, quando se curou de uma pneumonia dupla e se viu jogada pelo pai no Rio Tietê para fortalecer os pulmões. Ele segurava uma vara, presa ao maiô da filha, o que a impedia de se afogar. Maria ouvia a voz paterna: “Bata os braços e as pernas. Força… isso mesmo!” Morta em 2007, aos 92 anos, não foi apenas a talentosa divulgadora do nado moderno, mas a mulher que tirou das águas do rio o espírito olímpico que caracteriza até hoje as nossas aguerridas atletas.

De zero a dez, as condições para desenvolver suas carreiras saíram do chão e atingiram, digamos, perto da metade da escala. Às vésperas da Rio 2016, falta muito para sermos reconhecidos como uma nação de tradições olímpicas. Das 26 edições realizadas, o país disputou 21 e obteve 108 medalhas. O maior vencedor da história, os Estados Unidos, que só não participaram de uma edição, somam 2 295 medalhas, desempenho 21 vezes maior que o nosso. Mas, de olho no evento que mobilizará o mundo do dia 5 a 21 de agosto, muitos expedientes foram adotados aqui.

Em 2012, o governo federal anunciou o Plano Brasil Medalha na tentativa de pôr o país entre os dez primeiros lugares – nossa delegação acabava de voltar dos Jogos de Londres em 22º. Para isso, seria aplicado 1 bilhão de reais em preparação de atletas e construção de centros de treinamento. Segundo Ricardo Leyser, secretário de Alto Rendimento do Ministério do Esporte, o país já gastou 791 milhões de reais; deles, 328 milhões só com os competidores. Dos 22 centros, porém, metade não ficará pronta. “Ainda assim, é um legado. Serão usados da Olimpíada para a frente”, justifica. “Mas a classificação em disputas internacionais tem mostrado grande evolução dos atletas.” Com o avanço predominante das mulheres. Em um país em que os homens representam 75% dos indivíduos que praticam esporte (muito por influência do futebol), as modalidades olímpicas estão mudando o cenário. Nelas, as mulheres já são 41% dos atletas brasileiros que recebem ajuda federal, como a bolsa-atleta (de 370 reais a 3,1 mil reais a partir dos 14 anos) e a bolsa-pódio (de 5 mil reais a 15 mil reais aos que atuam em modalidades individuais e se colocam entre os 20 melhores no ranking internacional).

Em algumas áreas, o governo federal investe até mais em mulheres. O handebol feminino recebeu 10,2 milhões de reais; o masculino, 6,6 milhões. No basquete, foram 12,4 milhões ante 11,7 milhões. Entre os 12 atletas militares já classificados e com chances de ir ao pódio, nove são mulheres: Aline Silva (luta olímpica), Ágatha e Barbara Seixas (vôlei de praia), Martine Grael e Kehena Kunze (vela), Talita (vôlei de praia), Poliana Okimoto (maratona aquática), Iris Tang Sing (tae-kwon-do) e Yane Marques (pentatlo). O protagonismo também foi visto em 2015, ano preparatório para a Rio 2016, quando dominamos o vôlei de praia no Mundial da Holanda. Ágatha e Bárbara levaram ouro; Taiana e Fernanda, prata; Juliana e Maria Elisa, bronze.

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AINDA É PRECISO INVESTIR MAIS

Grande parte das boas performances, no entanto, são fruto do empenho e da teimosia das Marias Lenks de hoje. Natalia Gaudio, 23 anos, não figura entre as top-20 do mundo da ginástica rítmica e, por isso, não tem bolsa-pódio. Recebe 3 850 reais mensais em benefícios públicos, que não pagam o collant, as sapatilhas, a bola e a fita necessários para seus treinos e apresentações, que custam um total de 4,2 mil reais. Para garantir uma vida mais folgada, tornou-se modelo da agência Ford Models. Mesmo contando com patrocínio de uma empresa de saúde, já recorreu a vaquinhas entre amigos. “Juntei 20 mil reais e fui com minha técnica treinar na Bulgária”, conta ela. Já Rosângela Santos, 25 anos, do atletismo, se lembra de receber roupas e dinheiro de sua treinadora e de atletas mais experientes. Perseguir seu sonho era também realizar o de muitas que deram o sangue antes dela, em condições menos favoráveis.

Rifas ou o financiamento colaborativo na internet são recorrentes. Dona de 50% do poder ofensivo da seleção de polo aquático, eleita a segunda do mundo, a atacante Izabella Chiappini, 20 anos, encabeçou um crowdfunding de 80 mil reais para levar as 14 jogadoras a treinos na Itália. Ela nasceu em família de esportistas de classe média, treina nas belas instalações do Clube Pinheiros, na capital paulista, mas se acostumou com o cobertor curto. “A contribuição nos ajudará a manter os treinos até a Olimpíada”, diz. Sua colega Mélanie Dias, 24 anos, acha que a repercussão da iniciativa mostra quanto o apoio oficial e privado precisam crescer.

Também falta estrutura. Aline Silva, 29 anos, quinta no Mundial de Luta Olímpica (misto de luta livre e greco-romana), não encontrava adversárias na sua categoria (até 75 quilos) e teve que fazer do marido, Flávio Ramos, seu oponente no tatame. De tanto lutarem juntos, ele virou o técnico. A paulista mudou de cidade várias vezes atrás de apoio, o que conseguiu na Confederação Brasileira de Wrestling, no Rio de Janeiro. Para ela, a vida de cigana é café pequeno. “Quando não encontrava luta olímpica, praticava jiu-jítsu para não perder o ritmo. Pagava as contas trabalhando em balada e vendendo sanduíche.”

Não foi a pernambucana Yane Marques, 32 anos, quem vendeu lanches. A mãe dela, Goretti, oferecia seus quitutes em Afogados da Ingazeira. Quando um caçador de talentos procurou a família e disse que a garota, até então uma nadadora, tinha futuro no pentatlo, ouviu de uma Yane espantada: “Penta o quê?” Boa de forró, virou uma fortaleza na sequência de tiro, esgrima, natação, hipismo e corrida. É a única brasileira da categoria a ter no peito uma medalha de bronze, trazida de Londres, em 2012. E faz parte da corrente que crê ser possível a profissionalização: “Conto com bolsa-atleta, bolsa do meu estado, o auxílio do Exército (ela integra o programa das Forças Armadas, que investe 15 milhões no salário de seus atletas) e tenho patrocínios da Cisco, Petrobras e Nike”. Guardadas as proporções, é parecido com o que ocorre no futebol: nem todo craque ganha como Neymar; patrocínio é conquista individual. Daiane do Santos, 33 anos, aposentada na ginástica olímpica, reflete: “É meritocracia. Modalidades que obtiveram resultados expressivos recebem mais. E visibilidade também. Não sejamos ingênuos, a marca não quer só ajudar, mas ser vista”.

“QUASE ABANDONEI”

Nos relatos das mulheres, sobram frases como: “Por pouco não desisti”. A maratonista Adriana Silva, 34 anos, ainda se recorda da depressão que quase soterrou seu talento. Atleta desde os 12 anos, sofreu uma lesão no tornozelo esquerdo em 2005. “Operei, fiquei quase dois anos parada e perdi patrocínios. Pensei que não voltaria a disputar.” Ela se reergueu, conquistou o recorde brasileiro na maratona e correrá pelo país no Rio. Beatriz Neres, 29 anos, que deve confirmar sua classificação no triatlo em maio, quase virou um zumbi para atingir o patamar competitivo. “Trabalhava em uma agência publicitária e nadava na hora do almoço. À noite, corria. Dormia algumas horas e, às 4h30 da madrugada, pedalava no campus da Universidade de São Paulo. E ainda perguntam o que eu faço para viver quando digo que sou atleta.” Outra queixa: “O corpo é nossa ferramenta de trabalho, precisa de boa alimentação, suplementos e tempo de descanso. Com o que ganhamos, às vezes isso é impossível”. Mais uma: “Atleta não consegue estudar. Viajo para dez países por ano; deixei duas faculdades sem concluir. É preciso flexibilizar, com atividades à distância e aulas presenciais nas férias”.

A preocupação da piauiense Sarah Menezes, 25 anos, na seleção brasileira de judô desde os 15, é com o futuro. “As pessoas consideram você enquanto está na ativa. Tenho patrocínio da Embratel, mas isso um dia vai acabar.” Para ela, é fundamental ser aluna-atleta da Faculdade Santo Agostinho, em Teresina, onde cursa educação física sem pagar e recebe salário por ser do time da instituição. O caso é uma agulha no palheiro entre as esportistas brasileiras. Já nos Estados Unidos, o esporte é prioritário desde a escola primária e difundido como forma de ser um cidadão melhor. Como o ensino superior custa cerca de 60 mil dólares por ano, o jovem se esforça para alcançar a bolsa de aluno-atleta.

Sarah, no entanto, acha que as coisas estão melhorando: “Tenho até acompanhamento psicológico por Skype, oferecido pela Confederação Brasileira de Judô”. Ela diz que as novas gerações contam com mais amparo. “A confederação põe dinheiro na equipe de base. Na minha época, tudo era para o grupo sênior. Estamos criando consciência de atleta em crianças.” Esse é o caminho defendido por Daiane dos Santos. “O esporte vai além da medalha, entra no educacional, na formação do caráter”, diz. Para ela, a atividade deve se tornar uma política de estado e também receber apoio mais sistemático da iniciativa privada.

Nesse caso, precisam ser ampliadas as fontes de recursos, como a Lei Agnelo/Piva, de 2001, que repassa 2% da receita bruta de loterias federais aos Comitês Olímpico e Paralímpico, e a Lei de Incentivo ao Esporte, de 2006, que permite a empresas e cidadãos repassarem até 6% do que devem à Receita Federal para projetos aprovados pelo Ministério do Esporte. “Há três anos, eu achava que os investimentos permaneceriam depois da Olimpíada”, afirma a ex-atleta Hortência Marcari, a rainha do basquete. “Mas, com a crise atual, teremos cortes. Do governo, dos patrocinadores e apoiadores.” Se isso ocorrer, nossas heroínas terão que suar em dobro o collant, o short, o quimono…

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