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“Pensei em levar minhas crianças para longe da guerra. Não quero que sofram como eu.”

Sylvie recomeça a vida longe de sua primogênita após perseguição política na República Democrática do Congo, um dos piores países para ser mãe

Por Aline Takashima (colaboradora)
Atualizado em 28 out 2016, 09h59 - Publicado em 6 Maio 2016, 11h36

Neste Dia das Mães, CLAUDIA produziu três reportagens sobre mães imigrantes e refugiadas. Para sobreviver, elas fogem e arrastam toda a família, ou parte dela, em busca de segurança. Deslocam-se por conta de perseguições políticas e religiosas, violações de direitos humanos e questões econômicas. Muitas não escolhem o Brasil. Param aqui por sorte do destino. Embarcam em um navio sem saber o ponto final. Conversamos com mães que trouxeram os filhos, como a colombiana Yurani, as que engravidaram no Brasil, como a senegalesa Ndéye, e as que deixaram os filhos, como a congolesa Sylvie, cuja história você lê a seguir. 

No dia que seu marido desapareceu, Sylvie Mutienne cuidava dos três filhos em casa, na capital da República Democrática do Congo, Kinshasa. A estudante de Direito de 28 anos escutou passos apressados no portão seguido pelo toque da campainha. Abriu a porta esperando pelo pior. Naquele momento, descobriu que Claude (nome fictício de seu marido), foi preso em uma protesto contra o presidente Josephy Kabila.
“Mamãe, cadê o papai?”, perguntavam as crianças no ano conturbado de 2012. Sylvie silenciava-se sempre que lembrava de Claude. Desde que soube da prisão, o procurava nas delegacias e questionava todos os dias: “onde está o meu marido?”. Dividia o cuidado dos filhos Falone, Jessy e Wuinner, na época com 13, 3 e 1 ano, respectivamente, com os pais e uma prima enquanto trabalhava em um escritório de advocacia.

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As disputas políticas e territoriais entre etnias diferentes compõem o cenário do país. Claude é membro do partido UDPS (União pela Democracia e pelo Progresso Social, em tradução livre) e opositor ao presidente Josephy Kabila, no poder desde 2001. Em novembro de 2012, o marido de Sylvie foi levado para uma prisão fora da capital, sem julgamento. Cultivava amendoim e mandioca enquanto o chicote estalava em suas costas. Dormia no chão ao lado de outros prisioneiros, militares de Ruanda. “É um regime de escravidão”, desabafa. 
Certo dia, um comandante da prisão o reconheceu. Claude foi professor de educação civil e política do filho do militar, em uma escola da capital. “Eu vou ajudar você. Quem entra na prisão não tem dia para sair”, sussurrou o policial. Em uma noite, o militante do UDPS fugiu com a ajuda de um padre. A primeira ação que tomou quando encontrou abrigo foi ligar para Sylvie: “Se você conseguir sair do país, sai. Não fica aqui. Eu ainda estou vivo. Proteja os meus filhos”. Não revelou onde estava e para onde ia. Do outro lado da linha, a esposa chorava: “As crianças estão perguntando por você. O que eu vou falar?”.

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Jorge Hynd
Jorge Hynd ()

Sylvie não teve tempo de se esconder. Policiais invadiram a sua casa perguntando por Claude. O bebê Wuinner chorava no colo da mãe. Os guardas jogaram a criança contra a parede. A mãe em desespero gritava: “É melhor me matar agora mesmo. Eu não vou aguentar ver vocês torturando os meus filhos”. Os militares roubaram os pertences da casa. “Eles não falam que é roubo, eles dizem que é deles e, portanto têm o direito de levar”, explica Sylvie. Naquela noite, a esposa de Claude saiu de casa às pressas. Deixou a filha mais velha, Falonne aos cuidados de sua mãe e viajou até a província Bakongo. Lá, conheceu um capitão de navio cargueiro que a levou com os dois filhos para o Brasil.
A República Democrática do Congo é considerada uma das piores nações para ser mãe, atrás apenas da Somália, segundo a ONG Save the Children. Em média, entre os dez países nas últimas posições do ranking, uma em cada 30 mulheres morre no período da gravidez, e uma a cada oito crianças morre antes de completar cinco anos. Consequência da desnutrição infantil e falhas nos serviços básicos de saúde. O Brasil está na 77a posição, abaixo da Colômbia e da Argélia.
O navio atracou em Santos, São Paulo, após 40 dias de travessia. Sylvie acomodou seus poucos pertences, no bairro Brás, na capital do estado, e dormiu na rua abraçada com os filhos Jessy e Wuinner. As crianças magrinhas e cansadas já não sorriam mais nem perguntavam pelo pai. No dia seguinte, conseguiram abrigo no bairro da Penha, com a ajuda do Cáritas Arquidiocesana de São Paulo, centro de referência para os refugiados.
Cerca de 8.400 refugiados vivem no Brasil, é o que revela o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare). As principais causas dos pedidos de refúgio são violações de direitos humanos (51,13%), perseguições políticas (22,5%), reunião familiar (22,9%) e perseguição religiosa (3,18%). O país é o que mais recebeu o número de solicitações na América Latina em 2014, de acordo com a Agência da ONU para Refugiados.
Sylvie tinha esperança de encontrar o marido. “Ele pode estar na África, na Europa, talvez no Brasil”, pensava aflita. Conversava com os funcionários da organização internacional Cáritas em busca de pistas. Certo dia, escutou a assistente social do centro de referência para os refugiados dizer: “Traz os documentos de Claude Mutienne”. Rapidamente, a congolesa exclamou: “repete o nome que você disse. Ele é o meu marido. Onde ele tá?”.
Claude se escondeu em um convento na República Democrática do Congo por uma semana. Ganhou uma mala pequena com poucas roupas, e 150 dólares. Um padre o levou até um navio. Não sabia para onde ia. Só conhecia alguns países da África. Quando chegou em Santos, em outubro de 2013, observou a natureza e as pessoas brancas. Percebeu que estava em outro continente. Só não imaginou que a esposa e os filhos fizeram a mesma rota e moravam em São Paulo, a cidade mais procurada por imigrantes e refugiados na América Latina.
Segundo a Agência das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), 19,5 milhões de pessoas no mundo fogem do seu país em busca de segurança. Estima-se que 51% tenham menos de 18 anos. Só na República Democrática do Congo, um milhão de pessoas saíram de sua terra. O Brasil recebeu 844 congoleses, de acordo com o Conare. O quarto maior contingente de refugiados no país. 
No fim de março de 2014, Sylvie recebeu um telefonema para se reencontrar com o marido no Cáritas. Não demorou muito para a congolesa engravidar, dessa vez de uma brasileira, a Beatriz. Após ter o quarto filho, decidiu sair do emprego de ajudante de cozinha em uma creche para cuidar da caçula. “Vou morrer de fome, não tem problema. Mas vou ficar em casa com ela”, dizia.
A família ainda está incompleta. Falone mora na República Democrática do Congo com a avó. A primogênita de 17 anos não conhece a irmã caçula Beatriz, de um ano. “É difícil estar longe. Penso nela todos os dias”, suspira Sylvie que há três anos não vê a filha. O casal quer trazer Falone para o Brasil. Mas ainda não tem dinheiro suficiente para a passagem de avião.
Casos de mães que se separam dos filhos são recorrentes entre os refugiados. Para salvar a própria vida, muitas mulheres deixam suas crianças no país de origem, explica a coordenadora do Cáritas, Maria Cristina Morelli. “Elas sentem saudade, remorso por deixar um filho no caminho e a incerteza se irá reencontrar a criança.” Quando as famílias perdem a localização de um parente, como aconteceu com Sylvie, o centro de referência para os refugiados entra em contato com amigos e familiares dos refugiados, “com sigilo para evitar qualquer risco para a pessoa”.
A forma de demonstrar amor muda de um país para outro. No Brasil, as famílias levam as crianças no parque aos finais de semana, na República Democrática do Congo as mães cozinham para os filhos. Pelo menos é o que Sylvie acha. “Na África, a mãe faz comida aos sábados e domingos. Nós cozinhamos carne, peixe assado e batata-frita. Pratos que a gente não come no dia a dia. É uma forma de manifestar carinho.”
Se hoje a família está reunida novamente é graças aos filhos, explica a congolesa. “Pensei em levar minhas crianças para longe da guerra. Não quero que eles sofram como eu. Se eu não tivesse meus filhos, eu não estaria aqui”, revela abrindo um sorriso, de olho em Beatriz que mama em seu peito.

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