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O que o golfinho morto na Argentina tem a nos ensinar sobre consumo e redes sociais?

Muita coisa! Não está tranquilo, nem favorável e a gente precisa falar SÉRIO sobre isso.

Por Júlia Warken
Atualizado em 21 jan 2020, 14h30 - Publicado em 18 fev 2016, 16h23

“OMG, olha ali um golfinho! AMOOOO golfinhos, preciso registrar isso!”. E foi provavelmente assim, momentos depois de sentir muito ~amor~ de dezenas de pessoas, momentos depois de virar celebridade instantânea, que um pequeno golfinho morreu no litoral da Argentina dias atrás.

Milhares de animais, plantas e pessoas morrem cruel e estupidamente todos os dias. Não prestamos tributo a todos eles, mas o episódio aqui exposto tem traços emblemáticos e, sim, vale a pena focar nele hoje. O golfinho morto em Santa Teresita vem nos falar sobre consumo e redes sociais e sobre como estamos “fazendo isso errado”

Reprodução / Facebook
Reprodução / Facebook ()

Vamos começar pelo paradoxo que é admirar a beleza de um animal e não saber respeita-lo. É o processo de coisificação. Aquele animal foi reverenciado pelos turistas, que queriam tocá-lo e fotografá-lo, queriam viver esse momento mágico em que o cidadão se sente no Discovery Channel. Que ótimo saber que as pessoas veem a natureza como algo lindo. Que péssimo ver que elas transformam isso em produto de consumo de uma forma tão brutal. Ora, como é possível adorar um animal sem pensar nem por um segundo no bem estar dele? Esvaziou-se o sentido. Não há mais limites, não mais respeito, não há mais significado. Um bicho foi morto por ser adorado demais e esse paradoxo precisa ser revisto.

Vivemos em uma era em que o consumo nos faz amar coisas e coisificar todo o resto. Já não sabemos mais diferenciar coisas de não-coisas e por isso tratamos tudo da mesma forma. Consumimos tudo da mesma forma. O golfinho virou objeto, foi tratado como tal, consumido e descartado. Mas ele não está sozinho! Milhares de animais, silvestres ou domésticos, são consumidos e descartados diariamente. Milhares de pessoas, inclusive.

Almejamos, coisificamos, consumimos, descartamos. Esse processo sombrio se repete todo dia e tornou-se tão automático que nem notamos. Mas por que de repente notamos aquele golfinho? Porque sua tragédia foi documentada! Numa era em que cliques são tão acessíveis, instantâneos e abundantes é comum a gente esquecer que imagens são documentos. Mas são!

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Cada selfie postada é um documento que carrega consigo o significado de uma realidade especifica. A realidade de um momento histórico, de um indivíduo, de um determinado grupo de pessoas, de um tipo de experiência, de uma localidade, etc. E a imagem chocante do golfinho nos permite refletir sobre as particularidades da documentação em si. No caso, da documentação made in Século 21, via redes sociais.

Já percebeu que vivemos na era do “compartilho, logo existo”? Se uma experiência vivida não é clicada e postada isso basicamente significa que ela não teve importância, ou que nem mesmo aconteceu. Se você vai ao Louvre e não tira uma foto da Mona Lisa, é como se você nunca tivesse pisado lá.

 

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Monalisa

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Não é preciso fotografar a Mona Lisa para recordar o quão bela e especial é aquela pintura ou para mostrar à sua mãe um detalhe que você só percebeu vendo o quadro ao vivo. É muito mais eficiente jogar “Mona Lisa” no Google para isso. Mas o sujeito documenta aquele momento para que ele tenha significado. Hoje o significado da experiência mora na divulgação daquele momento e não mais na experiência em si.

Ora, é impossível curtir plenamente um show quando o cidadão se preocupa mais em filmar o evento do que em vivê-lo. E também é muito irritante para quem está atrás desse cara na plateia, diga-se de passagem. Mas é o que acontece, né? Portanto, não é espantoso ver que lá na praia de Santa Teresita os veranistas não tenham se contentado em estar frente a frente com um filhote de golfinho. Era preciso compartilhar no Facebook! E a coisa saiu do controle, como bem sabemos.

Em 1992, o viajante Christopher McCandless deixou para o mundo um conselho que se tornou emblemático: “A felicidade só é real quando compartilhada”. O cara escreveu isso pouco antes de morrer, depois de ter passado meses viajando sozinho e sem dinheiro, por acreditar que só assim seria plenamente feliz. A história dele virou o livro/filme “Na Natureza Selvagem”, lembra? Isolado no Alasca, o cara descobriu que ele havia se equivocado terrivelmente e que a real felicidade só existe quando é vivida em conjunto. McCandless morreu muito antes do surgimento das redes sociais e, portanto, muito antes que a palavra “compartilhar” ganha-se um outro significado. É irônico e um pouco assustador perceber que sua profecia está mais atual do que nunca, só que num sentido totalmente novo. Hoje a felicidade só é real quando [postada, comentada, curtida] e compartilhada. Só que isso acaba por esvaziar a experiência da felicidade em si, especialmente quando vem de encontro à lógica do consumo desenfreado e do descarte imediato.

A boa notícia é que o caso do golfinho morto em nome da selfie desencadeou uma indignação generalizada. Só que de nada adianta apontar o dedo para aqueles banhistas e chamá-los de monstros. É a saída mais fácil, só que também é a mais tola e inútil. O problema não diz respeito à meia dúzia de turistas sem noção, ele diz respeito à cultura contemporânea. É sintomático e diz respeito a todos nós! Ao invés de simplesmente compartilhar a indignação via Facebook, precisamos compartilhar a responsabilidade pelo momento em vivemos. Só assim pode ser que as coisas mudem.

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