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Saiba quais são os riscos de usar remédio para déficit de atenção para turbinar o cérebro

Agitação sob controle... Eis a meta do remédio de uso controlado para quem tem déficit de atenção e hiperatividade. Mas ele ganhou fama de ser um estimulante poderoso que aumenta a concentração, e isso tem fomentado o uso sem receita por gente saudável - um dos motivos de suas vendas dispararem.

Por Cristina Nabuco (colaboradora)
Atualizado em 28 out 2016, 14h39 - Publicado em 31 mar 2015, 08h21

Sossegar crianças agitadas ou turbinar o cérebro de jovens e adultos. Essas promessas fizeram disparar as vendas de um medicamento de tarja preta: 2,75 bilhões de caixas de cloreto de metilfenidato – equivalentes a 54,2 bilhões de reais – foram comercializadas no país entre julho de 2012 e julho de 2013, segundo a consultoria IMS Health do Brasil. Em dez anos (de 2002 a 2013), houve um impressionante aumento de 775% no consumo de Ritalina (um dos nomes comerciais mais conhecidos do composto, que pode aparecer nas farmácias também como Concerta e Venvanse), segundo tese de doutorado da psicóloga Denise Barros desenvolvida na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e apresentada no ano passado. Os números foram obtidos com base nos relatórios sobre produção, importação e estoque de metilfenidato da Junta Internacional de Controle de Narcóticos, órgão vinculado à Organização das Nações Unidas (ONU). A tendência de crescimento já havia sido apontada em 2012, em um boletim da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que admitiu a ocorrência de “possíveis distorções” na utilização dessa medicação.

O cloreto de metilfenidato é vendido com retenção de receita para tratamento do transtorno do déficit de atenção de hiperatividade (TDAH), que afeta 5% das crianças e até 3% dos adultos, provocando grande agitação física e dificuldade de concentração. Os pequenos não conseguem ficar sentados, estão constantemente pra lá e pra cá, falam demais, não prestam atenção às aulas. Como consequência do quadro, cresce a taxa de reprovação e o abandono escolar. Nos adultos, o sintoma principal é a inquietude, que traz dificuldade de parar no emprego, impede de relaxar na hora do lazer, implica alto risco de acidentes de carro e uma taxa de divórcios quase duas vezes maior, informa o psiquiatra Paulo Mattos, professor do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Perigo de falso positivo

“Não há evidências de aumento na incidência do transtorno”, descarta o psiquiatra Mattos, que é um dos maiores especialistas brasileiros em TDAH. As explicações para a alta no consumo do metilfenidato seriam, portanto, outras. Primeiro, a população tem procurado mais auxílio médico, o que favorece a detecção de casos que não eram descobertos antes. “Quando avança o conhecimento sobre uma doença, aumentam, naturalmente, o número de diagnósticos e o tratamento”, diz. O médico, no entanto, insiste que muitos ainda ficam sem isso, sujeitos aos prejuízos impostos pelo transtorno. A segunda explicação é que detecções apressadas podem dar margem a falsos positivos. Isso quer dizer que adultos e crianças estão sendo rotulados de portadores de TDAH quando não são. O alerta foi feito por um dos maiores especialistas mundiais no transtorno, o psicólogo Keith Conners, da Universidade Duke, nos Estados Unidos, durante um congresso em Washington, em 2013. “A desatenção é um sintoma universal presente, em graus diferentes, em vários distúrbios psiquiátricos e até em pessoas saudáveis. Não pode ser considerada sinônimo de TDAH”, adverte Mattos. Para diagnósticos mais precisos, ele avisa: “Deve-se avaliar com critério o impacto dos sintomas na vida da pessoa”.

Esse tipo de exagero, que resulta em imprudência, também é percebido pelo neurologista da infância Mauro Muszkat, que dirige um serviço multidisciplinar de atendimento a crianças com TDAH na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “Muitas chegam com diagnóstico ou até medicadas, mas só 30% têm realmente o transtorno.” Ele salienta que o diagnóstico não pode ser feito em 15 minutos. É preciso uma avaliação mais ampla, que contemple a escola, a família e outros contextos. Segundo o especialista, esse cuidado é necessário porque “o tratamento bem conduzido transforma a vida da criança”.

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O terceiro motivo para a explosão de vendas é a fama de turbinar o cérebro, por isso a Ritalina se difundiu entre candidatos a vestibulares e concursos públicos, quem vai encarar provas de cursos como engenharia e medicina ou exames de habilitação profissional – coisas, enfim, que exigem muita concentração. Tem desbancado até o café e o cigarro, estimulantes tradicionais em madrugadas sem dormir. Em levantamento de 2014, 34,2% dos estudantes do quinto e do sexto ano de uma faculdade de medicina do Rio Grande do Sul usavam metilfenidato; 23,02% sem receita. Outro trabalho baseou-se em entrevistas com 150 universitários de Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro (dos cursos de farmácia e medicina), sem diagnóstico de TDAH: 60% utilizaram o remédio por indicação de amigos e colegas; 87% sem prescrição médica.

Pressão por bons resultados

O fármaco pode ser obtido no mercado negro (em sites que vendem sem receita) ou com conhecidos que têm TDAH. Mas há quem simule os sintomas. O participante de um fórum de jogos ensinava a um vestibulando no ano passado: “Tome três energéticos e vá ao médico. Antes, leia no Google os sintomas para os quais o remédio é indicado e diga ao médico que você está com eles. Bingo. Ele te receitará Ritalina”. Anos depois, a prática de adotá-lo como estimulante pode migrar para a vida profissional. “O uso ilegal decorre da pressão social e da exigência de bons resultados”, diz a psicóloga Denise Barros. “Vale a pena questionar a vida atual, que obriga a recorrer a um medicamento para dar conta das demandas.”

Resta saber se o metilfenidato corresponde à sua fama ao ser usado por quem não tem a doença à qual se destina. No estudo de Campos dos Goytacazes, 86,49% dos usuários relataram aumento da concentração e 54,05% melhora do rendimento acadêmico. “Como é indicado por amigos, não dá para garantir que os efeitos decorrem mesmo da bioquímica do medicamento ou se são fruto de influência psicológica”, diz Denise. Para conferir, a pesquisadora Silmara Batistela, do Departamento de Psicobiologia da Unifesp, dividiu 36 jovens saudáveis de 18 a 30 anos em quatro grupos: um tomou placebo, os outros três receberam concentrações diferentes de metilfenidato. Testes para avaliar a atenção, a memória e a capacidade de planejamento não encontraram diferença nenhuma entre os grupos. Segundo a autora do estudo, em jovens com funcionamento cognitivo saudável, o medicamento não tem o mesmo potencial benéfico que nas pessoas com TDAH.

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Uso envolto em mitos

Esse estimulante do sistema nervoso central pertencente ao grupo das anfetaminas bloqueia a recaptação e aumenta a produção de dopamina e noradrenalina, neurotransmissores fundamentais para a atenção, a memória e a regulação de humor. O efeito dura cerca de quatro horas. Por predisposição genética, que pode ser agravada por fatores como baixo peso ao nascer e abuso de tabaco e álcool na gravidez, pessoas com TDAH têm concentrações mais baixas desses mensageiros químicos, em especial da dopamina, o que é compensado pelo remédio.

Mas o uso é cercado de mitos, adverte o psiquiatra André Astete, que preside o Centro de Estudos em Neurociências, Psiquiatria e Psicologia da Residência de Psiquiatria da Secretaria Municipal da Saúde de São José dos Pinhais, no Paraná. “Ouve-se que inibe a criatividade infantil, gera robozinhos ou é a droga da obediência. Hiperativos não são mais criativos, e sim mais agitados e impulsivos. O metilfenidato não é um calmante. Ele melhora a atenção e ajuda a criança a se conter”, explica. Outra fantasia é a de que é a pílula da inteligência. O máximo que o remédio faz em uma pessoa saudável é espantar o sono e deixá-la desperta. Não a transforma em gênio. “É como destrancar uma porta”, compara o médico. “O conteúdo dependerá do que há por trás dela.”

E mais lá na frente?

Os efeitos colaterais desse remédio podem ser mais intensos em adultos e até intoleráveis em pessoas saudáveis, avisa a neurologista Sonia Brucki, do Departamento Científico de Neurologia Cognitiva e do Envelhecimento da Academia Brasileira de Neurologia: insônia, perda de apetite, boca seca, dores de cabeça e abdominais, arritmia, palpitações em geral, tremores, ansiedade, euforia e aumento da pressão arterial. Outros, como a redução na estatura e risco de dependência, são raros. “O uso na infância é seguro, se for bem indicado e supervisionado”, diz a neurologista. “Exceto nos menores de 6 anos, que não respondem bem e podem ter reações intensas”, ressalva Paulo Mattos.

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Mas o que pode ocorrer a pessoas sem TDAH a longo prazo ainda é desconhecido. Ao desregular o ritmo de sono e a produção de neurotransmissores, cogita-se a possibilidade de reduzir a capacidade de estabelecer conexões nervosas, piorando a memória e o aprendizado – ou seja, o oposto do que se pretendia. Mas nada está comprovado. Em 2008, a respeitada revista científica Nature publicou um manifesto favorável à regulamentação de fármacos para aprimoramento cognitivo. Um dos signatários, o bioeticista John Harris, da Universidade de Manchester (Inglaterra), defende o uso deles como extensão natural do processo de educação. Antes, porém, é preciso atestar a segurança e a eficácia. E responder a uma pergunta controversa: será justo o doping mental?

 

“Tomei medicamento sem ter nenhum problema”

“Eu ouvia tanta gente falar bem desse medicamento, que resolvi tomar, mesmo sem ter TDAH ou qualquer problema. Um amigo me arranjou. Estava no último ano do ensino médio, em época de provas e às vésperas de fazer vestibular. Minha concentração melhorou tanto que, em duas tardes, estudei tudo o que havia programado para uma semana. O duro foi aguentar a insônia. Por mais que estivesse cansada, simplesmente não conseguia dormir. De manhã, tomava café, ia para a escola e, à tarde, engolia mais um comprimido para estudar. Fiquei nesse ritmo por quatro ou cinco meses. Até começar a ter amnésia. O estudo ainda parecia render bastante, mas, na manhã seguinte, não era capaz de me lembrar de nada. Fiquei desapontada e abandonei o remédio.”

Juliana Martins, 23 anos, vestibulanda de medicina

“Fui diagnosticada com TDAH e o remédio ajudou”

 

“Meu irmão foi diagnosticado com TDAH na infância e se tratou. Não funcionou: ele continuou a repetir o ano. Eu me forçava a estudar e passava raspando em matemática, física e biologia. Eu me formei em comunicação, mas quis cursar medicina. No vestibular, veteranos puseram um carro de som na rua e não consegui fazer a prova. Sempre fui distraída, mas nada igual àquele dia. Saí desesperada dali. Fui a um neurologista e ele diagnosticou TDAH em alto grau. Enquanto meu irmão é hiperativo e faz bagunça, sou distraída e fico ‘viajando’. O remédio ajudou: aumentou a concentração e aliviou o sono que sentia de dia. Às vezes saía da aula para cochilar. Acalmei e pude passar no vestibular. Daí parei de tomar. Vou ser cirurgiã e temo que o uso prolongado me deixe com tremedeira.”

Marcela Sampaio, 23 anos, caloura de medicina 

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