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Doenças da beleza: quando a vaidade se transforma em obsessão

A linha que separa você ser "saudável" de ter uma compulsão por algo é tênue - mas esse transtorno é cada vez mais comum e nos adoece

Por Gabriela Kimura
Atualizado em 21 jan 2020, 04h35 - Publicado em 26 set 2016, 06h04

Quantas vezes você se olhou no espelho e ficou descontente com o que viu? Deixou de usar determinada roupa ou ir a algum evento por não estar satisfeita com a imagem que ali refletia? Em algum momento da vida, todas as mulheres já questionaram a beleza bem em frente a elas: uma gordurinha que não deveria existir, seios mais firmes (e maiores), pele mais lisa e a obrigação de seguir uma alimentação “supersaudável”.

Para alguns, isso pode parecer frescura e até mesmo exagero, mas as doenças da beleza são reais e cruéis com as mulheres. A psicanalista Joana Vilhena Novaes, coordenadora do Núcleo de Doenças da Beleza do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social (LIPIS), da PUC-Rio, aponta a mudança na forma como esses transtornos têm sido percebidos nos últimos anos.

“Há 40 anos, se dissesse para você que eu malho todos os dias, não como salmão por ter hormônios, faço exames periódicos e não como carboidratos depois das 18h, você provavelmente diria que eu tenho um transtorno. Hoje em dia, essas práticas são ressignificadas”, explica.

A percepção do que é a beleza adapta-se de tempos em tempos, dificultando o diagnóstico e a abordagem sobre tais patologias. Tanto que elas só foram incluídas no Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais (DSM, na sigla em inglês) em 1995. “O nome psiquiátrico é transtorno dismórfico corporal, que é, na verdade, um transtorno obsessivo compulsivo (TOC) com ‘ares contemporâneos’. São os transtornos que geram uma distorção na imagem corporal e também uma mudança severa no regime alimentar – como a anorexia, vigorexia, bulimia e ortorexia“, aponta.

Ile Machado/Carolina Horita/Camilla Loureiro Ile Machado/Carolina Horita/Camilla Loureiro

Apesar de ser algo relativamente recente, o entendimento sobre como essas patologias afetam a vida das pessoas muda com o tempo. Já houve décadas em que estar acima do peso era o padrão de beleza, com mais curvas e “gordurinhas”, ao passo em que, hoje, vivemos uma era de culto ao corpo “saudável” – e muito mais magro do que antes, diga-se de passagem. “Esses parâmetros para enquadrar e classificar o que é doença e o que é vaidade e cuidado também mudam ao longo da história”, elucida Joana.

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As doenças da beleza são transtornos dismórficos corporais que, por sua vez, configuram um quadro de ansiedade severa, enquadrado como transtorno obsessivo compulsivo (TOC).

Vaidade x obsessão

Ninguém vai dizer que você não pode cuidar do seu cabelo, da pele, usar maquiagem, alimentar-se bem e praticar exercícios físicos, pois isso é algo doentio. Como explica a Dra. Joana, algumas atitudes cotidianas podem ajudar a diferenciar a vaidade de comportamento obsessivo. “A pessoa tem uma relação compulsiva com comer, exercitar-se e aceitar-se. Ela faz isso não porque quer, mas por não conseguir evitar essa série de comportamentos que se encaixam no quadro de transtornos de ansiedade bastante severos.”

Ile Machado/Carolina Horita/Camilla Loureiro Ile Machado/Carolina Horita/Camilla Loureiro

A consequência imediata dessa rigidez excessiva é o prejuízo nas relações laborais e sociais, transformando o “ritual diário” em dogma. “Normalmente, a pessoa acredita que o que ela está fazendo é para o bem estar de seu corpo e para sua saúde, embora muitas dessas práticas – rígidas e pouco flexíveis – tragam mais malefícios do que benefícios”, pontua.

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É uma prática de aprisionamento, tornando-se algo que você ‘não consegue negociar’.

Pense quando você (ou alguém conhecido) deixa de sair porque se sente “gorda” ou quando é preciso acordar cinco, seis horas antes do horário habitual para conseguir cumprir a agenda de exercícios, atrasando-se para o trabalho. Quando é difícil relacionar-se com outra pessoa, pelo medo excessivo de não ser aceita por conta de seu corpo, por exemplo, é o que separa obsessão da vaidade.

Uma doença silenciosa (e de gênero)

Do jeito que se fala das consequências gravíssimas do TDC (Transtornos Dismórficos Corporais), parece quase impossível não perceber quando ele começa a se instalar no corpo de alguém. A grande questão é que o comportamento obsessivo não aparece de repente: ele chega lentamente, como um “cuidado extra”, uma “preocupação com o bem-estar” ou aquele famoso “estou maneirando durante a semana”.

“É aquilo que parece uma preferência ou uma filosofia de vida, sempre de forma sutil. ‘Eu posso comer isso, mas prefiro não’ e assim vai. É um aumento gradual até que a pessoa se torna obcecada por aquilo, podendo usar de métodos compensatórios como a indução do vômito, uso de laxantes ou exercícios físicos imediatos para ‘resolver’ esse problema'”, explica Joana Vilhena Novaes.

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Ile Machado/Carolina Horita/Camilla Loureiro Ile Machado/Carolina Horita/Camilla Loureiro

O paradoxo da pressão da “beleza ideal”: ser perfeita, mas não ser boa em absolutamente nada.

Certa aceitação desses hábitos por parte da sociedade, aliada a uma obsessão que progride gradualmente, é a combinação certeira para que a pessoa entre nesse ciclo vicioso e, mesmo aqueles mais próximos, não consigam perceber. “A percepção pela família pode levar até seis meses, quando os sintomas já são mais graves (e mais aparentes)”, afirma a psicanalista.

Além disso, a especialista conta que 95% dos casos atendidos são de mulheres. Ou seja: o fato da cobrança imposta sobre nós ser tão maior que entre homens, o TDC poderia até ser considerado um problema de gênero.

A culpa da sociedade

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É quase imediato o julgamento em cima de quem sofre com os transtornos, principalmente das mulheres, chamando-as de “loucas”, “descontroladas”, “compulsivas” e “doentes”. O que muitos não querem ver é que, dentro dessa sociedade, existem construções que permeiam, limitam e oprimem a vida delas.

Ile Machado/Carolina Horita/Camilla Loureiro Ile Machado/Carolina Horita/Camilla Loureiro

“Há a ideia de que, para ser bem sucedida, você precisa ser magra, jovem e saudável. Isso tudo é uma construção social e cultural – do consumo, do culto ao corpo e da indústria farmacêutica. É um sintoma social: hoje em dia, você precisa ser bem menos gordo para estar fora do padrão, bem como muito mais magra para ser bonita. É em nome disso que a população adoece: o medo da exclusão social”, pontua a psicanalista.

As origens dos problemas podem vir de uma infância e adolescência traumática, sofrendo bullying por estar “fora dos padrões”, fossem quais fossem na época. Podem vir de experiências negativas no âmbito amoroso, na reprovação no ambiente de trabalho e da mídia. Daquelas capas fabulosas de revista com mulheres e corpos que nunca teremos, com rostos que nunca serão os nossos e vidas que nunca existirão para nós.

Por fim, esse medo de ser excluído nunca é sem fundamento: “Ninguém recrimina quando você conta as calorias e lê todos os rótulos, a pessoa é vista como cuidadosa”, exemplifica Joana. Agora, pense o que alguém diz quando você decide comer aquele hambúrguer delicioso ou pular a academia para ficar mais algumas horinhas deitada na cama no domingo de manhã?

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Os novos deuses e deusas

E se, antigamente, deixar de ir à academia no sábado era completamente normal, hoje, sofremos julgamentos de todos os lados. São as musas fitness publicando fotos com aqueles corpos absurdamente sarados, treinos impossíveis para um ser humano realizar e comidas “funcionais” absolutamente horrorosas, mas que a gente “deveria” comer.

Ile Machado/Carolina Horita/Camilla Loureiro Ile Machado/Carolina Horita/Camilla Loureiro

Para as mulheres, esse é considerado o “padrão” de beleza – que, com certeza, não representa as brasileiras.

“O que antigamente era visto com maus olhos – o fisiculturismo, por exemplo -, hoje em dia, são os novos deuses e deusas fitness. Todos eles disseminam nas redes sociais junto com nutricionistas funcionais qual a receita ou o treino que eles fazem. Se você faz isso, significa que você está ‘cuidando do seu corpo’, não colocando ‘lixo’ dentro dele”, exemplifica a psicanalista.

O fato de esse “estilo de vida saudável” ser tão bem aceito pela sociedade também leva a crer que o indivíduo que divulga (e segue rigorosamente tal estilo) é imediata e socialmente aceito. Ninguém analisa que, por trás de fotos e corpos esculturais, tem todo um mercado que se alimenta disso. “A indústria do ‘culto ao corpo’ movimenta muito dinheiro”, afirma Joana.

Aliás, um levantamento da agência norte-americana de pesquisa Euromonitor apontou que o Brasil é o 5º maior mercado de alimentos e bebidas saudáveis. De acordo com a agência, o país teve um crescimento de 98% de 2009 a 2014. Sabe aquele suco verde que você viu no perfil da fulana ou aquela farinha de linhaça que fulano adora? Com certeza eles não comem aquilo de graça, já que esse segmento de venda faturou US$ 27,5 bilhões em 2015.

E por que aprendemos a não nos amar?

Nos últimos tempos, muitos vídeos e textos apareceram nas redes sociais falando sobre a necessidade de nós, mulheres, sermos mais gentis conosco. É uma batalha intensa, diária e que nunca cessa, pois nunca paramos de odiar algo em nós. E ainda tem o fato de que um elogio não pode ser, simplesmente, aceito: é preciso encontrar algo negativo para rebatê-lo.

“As selfies são também uma forma de construção identitária, que diz se somos aceitos ou não na sociedade. Essa é a forma contemporânea de conversa: suprimindo as palavras e tornando-a totalmente imagética. É uma sociedade de evitação ao contato, que está o tempo todo conectada”, afirma Joana.

“A aceitação social é importante para o ser humano, mas nós não somos socializados para ficar ‘nos elogiando’. É um resquício da cultura vitoriana de contenção e de que o autoelogio é condenável. Chega a ser uma contradição, pois você não pode acatar bem o elogio, mas percebemos que a quantidade de fotos postadas (as selfies) demonstram essa necessidade de se sentir aceito”, pontua Joana. É que, nessas conversas virtuais e imagéticas, não precisamos exprimir as nossas necessidades mais vitais de aceitação. Um coraçãozinho aqui e um like ali já são tudo o que buscamos – e sem ter que agradecer ou falar qualquer coisa.

Ile Machado/Carolina Horita/Camilla Loureiro Ile Machado/Carolina Horita/Camilla Loureiro

A pesquisa revela a importância da diversidade na mídia – que tem impacto direto na vida dessas mulheres.

Ainda que a mídia tenha um papel bem grande na construção identitária do que é aceito, considerado bonito e “visto com bons olhos” pela sociedade, essa noção também se modifica ao longo do tempo. Por mais que tenhamos esboços de representatividade e diversidade – que, não se enganem, são uma verdadeira vitória -, os padrões e ideias como concursos de beleza têm um impacto na vida dessas mulheres. E isso não pode ser ignorado: por mais que esses eventos reforcem, de certa forma, um ideal inatingível para a maioria da população feminina, eles também são, paradoxalmente, uma maneira de representar as minorias. Isso quer dizer que, apesar do padrão eurocêntrico, ter seis finalistas negras na competição é, sim, ter diversidade.

Nesses esboços de diversidade, mais candidatas negras como finalistas do maior concurso de beleza do país, corpos com mais curvas em editoriais de moda, modelos fora do padrão e ensaios fotográficos com mulheres “de verdade” ajudam a redesenhar o que significa a beleza brasileira. Afinal, quem foi que disse que ser você não é bonita?

Continue acompanhando o Especial Beleza Diversa aqui >> Precisamos mesmo de concursos de beleza em 2016?

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