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A primeira vez que ouvi “você tem HIV”

Em relato exclusivo para o portal MdeMulher, a blogueira Flor conta sobre o começo de sua nova vida depois que descobriu que tinha o vírus.

Por Redação M de Mulher
Atualizado em 15 jan 2020, 08h27 - Publicado em 23 fev 2014, 21h00

Ilustração: Biel Carpenter

Aos 29 anos, lá fui eu ao checkup de 2013: 

– Doutora, pode pedir tudo o que tenho direito. Tenho sentido meu organismo meio frágil ultimamente… Não sei o que pode ser.

Eu me preparava para bons dias de Carnaval longe da minha cidade. Tinha acabado de selar um belo projeto que prometia render frutos profissionais no ano da serpente. Já podia imaginar minhas férias — muita praia, noitadas, trilhas, flertes… Tudo a que uma mulher de 29 anos tem direito. 

– Bom dia, Flor, aqui é do consultório da doutora Caroline, você pode passar aqui ainda hoje? Tem uma alteração nos seus exames e ela quer te orientar. 

– Tudo bem, passo aí depois do almoço, ok?

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O calor estava forte  não tanto quanto o deste ano, diga-se de passagem. Caminhando pela sombra, lá fui eu ao encontro do meu diagnóstico, sem nem saber…

Minha vida profissional sempre foi embaralhada. Nunca soube exatamente o que queria fazer. Se seria artista, doutora, jardineira, amélia, militante das minorias ou se iria apenas vagabundear sem horário pra nada. Essa coisa de carteira registrada, emprego fixo e relógio de ponto sempre me contrariou.

– Oi, Flor. Como você está se sentindo?  

– A dor de garganta passou doutora, mas ainda me incomodam esses gânglios aumentados. Tenho me sentido um pouco mais cansada que o normal e tive uma febre nesse meio tempo. Parece que, quando melhoro de uma coisa, vem outra na sequência, sabe? Mas me diga, que exame foi esse que teve alteração? 

– Então, Flor, seu exame de HIV deu reagente. Você terá que repeti-lo. 

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De uma coisa eu tinha certeza: sempre gostei de livros de poesia. Em determinada época, cheguei a culpá-los pela minha abstração e interrogações constantes. Neruda, Barros, Campos (todos eles), Quintana, Moraes, Hilst, Leminski… Hoje, aos 30 anos, posso dizer que a poesia gerou um caleidoscópio natural na retina: tudo que vejo tem efeito. 

Atordoada e falando sozinha pela rua, segui para o laboratório a fim de refazer o tal exame. Já passavam das 14 horas e, chegando lá, me disseram que eu teria que retornar no dia seguinte. Como assim?! 

– Você não está entendendo, moça, eu preciso refazer esse exame agora. Aconteceu algum erro. Ninguém me avisou sobre o horário quando eu telefonei. Veja o que você pode fazer por mim, por favor.

Entendo. Vou conversar com a gerente, ok? Mas esses exames de última geração são muito precisos. Pediram pra você repetir apenas para cumprir protocolo.  

Não pode ser, deve ter alguma coisa errada. Por favor, quero colher sangue agora.  

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Se posso escolher, sempre prefiro viajar fora de temporada. Assim consigo enxergar melhor a arquitetura localCarnaval exige uma disposição que acho que já perdi faz muito tempo — bebedeira exagerada, sujeira pelas calçadas… Em contrapartida, gosto de gente, de calor, de ver folias — quem não gosta, afinal?  

Saí do laboratório sem a mínima noção do que fazer. Não sabia em que rua seguir, em que esquina virar… Era como se o curativo, no local da picada, e meus olhos arregalados me denunciassem. Só vinha a vontade de ser invisível e o desejo de voltar no tempo para evitar tudo isso.

Já me apaixonei algumas vezes na vida. E o sexo deveria ser sempre um processo racional, apesar de não ser bem assim que funciona. A tensão dos corpos, por vezes, dribla alguns cuidados simples — e é exatamente nesse deslize que nos colocamos em risco.  

No mesmo dia, recebi a confirmação pela testagem rápida: HIV reagente. Um simples furo no dedo, 15 minutos de espera e questão resolvida. Parafraseando Maysa, meu mundo caiu.

Se algum sistema está desajustado, a melhor forma de reverter a situação é buscando conhecer seu funcionamento. Educação sexual é, também, prática. Se por ventura em algum momento me descuidei nesse quesito, meu corpo sabiamente respondeu — e eu, infelizmente, tive que enfrentar as consequências.

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Comunicar meus pais, agendar infectologista, estudar o vírus, me alimentar melhor, colher sangue, buscar resultados, enfrentar os postos de atendimentos especializados, fuçar no Google imagens e depois me arrepender… Recusar a morte, engolir pesadelos, me elevar em sonhos, rever minha vida social (e amorosa), segurar o choro, tolerar meus desatinos, repensar a noitada, repensar a dose, repensar o carinho… Contar CD4/CD8 e carga viral, torcer pelo bom funcionamento do organismo (mais do que para o time de futebol), desenhar a palavra “medo”, revisar meu mapa astral, inventar um pseudônimo, trocar os móveis de lugar — tudo isso e mais um pouco foi o começo da minha nova vida

Não, não fui viajar no carnaval de 2013. Preferi visitar o fundo do poço. Preferi encontrar a tal mola, resolvi desencanar do mundo lá fora — mergulhar nas minhas memórias e refazer todos os meus planos. Essa, definitivamente, seria minha mais plena viagem: reconhecer-me. 

Todo susto tem um tempo de duração  o meu durou longos meses. Foi difícil aceitar o fato de estar infectada por um vírus letal, porém, mais difícil ainda, foi não poder dividir esse tormento com as pessoas ao meu redor. Não subestimo meus amigos (todos eles são incríveis, de verdade), mas nesse momento preferi me preservar. O preconceito é uma falha, uma farsa, uma faca…  

Sou cheia de defeitos e humildes qualidades. Aprender sobre o preconceito na pele foi um longo estudo de observação, e é tão nítido perceber isso no ser humano… Existe um momento em que os olhos revelam o crime, é como se um corpo fugisse milimetricamente do outro. É bem sutil a expressão facial, mas mesmo assim ela consegue desencorajar, ferir, desmotivar. Eu chego a acreditar que preconceito mata e degenera e, mais ainda, agride, oprime e segrega. É tão simples transmutar esse juízo em algo mais belo. Basta se informar, conversar, ouvir outras versões da mesma história, entender os processos… Por que me parece tão difícil? 

Hoje, tenho alguns rituais: antes de dormir, tomar quatro comprimidos. De quatro em quatro meses, visitar o infectologista e refazer meus exames. Na hora do sexo: camisinha

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Há muitos caminhos inexplorados, muita ciência que ainda não folheei, poetas desconhecidos, habilidades não testadas, amores que ainda não envolvi nos braços, um mundo de sorte variável ao meu redor.  

Não é simples conviver com o HIV. Alguns momentos de medo te deixam sem chão, as relações ficam sujeitas a aprovações. Existe risco de efeitos colaterais por conta das doses diárias de medicamentos e, colher sangue de quatro em quatro meses, te faz lembrar da vulnerabilidade da carne, entre outros dramas… A aceitação da experiência é o que chega mais perto da palavra “cura”. 

Não sou mais a mesma e, felizmente, ainda assim não sei quem sou.

Flor é paulistana e escreve nos blogs Drama da Flor e Soropostivos.

*Este texto foi produzido por participantes do 31o. Curso Abril de Jornalismo (CAJ), sob orientação do portal MdeMulher, e integra a campanha Atitude Abril.

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